Se eu disser que há tempos não passava uma tarde tão gostosa como a que passamos na casa da Fabiana, no Moinho, talvez você ache que estou forçando a barra ou, no mínimo, exagerando. Mas não estou, não. Foi gostoso mesmo.
A bem dizer, até então eu só havia encontrado a Fabiana uma única vez, no dia em que a ajudei a empurrar sua pesada carroça (ver post). Desde então, vez ou outra trocamos mensagens pelo WhatsApp: às vezes sou eu que me lembro dela, às vezes é ela que se lembra de mim. Sem o tradicional (e chato) “você sumiu… se esqueceu de mim?”, compartilhamos sempre a alegria do reencontro, mesmo quando só trocamos uma piadinha ou um “durma bem, amiga”.
Desta vez foi ela quem se lembrou de mim, pedindo alimentos e fraldas. Ela nunca havia me pedido nada, mas como me explicou em seguida, “a rua está fraca e muito concorrente”. Estava difícil pra ela, com 2 filhos em casa e um nas ruas, “perdido pras drogas e pras coisas erradas”. As fraldas eram para um sobrinho, cuja mãe encontra-se em situação ainda pior depois de ter sido abandonada pelo marido, preso. Fez o pedido, mas logo emendou: “se não puder tudo bem é bom que já marcamos para estudar matemática”.
Com o dinheiro de um leilão (relógio doado por uma amiga e “arrematado na empresa em que trabalho), compramos leite, pão, bolachas, ovos, café, açúcar, arroz, feijão, amaciante, sabão em pó e fraldas. E guaraná, pois um dos filhos “é viciado”. Na porta, apresentei: “Essa é a Sonia, minha amiga. Agora ela é nossa”.
Fabiana estava super atarefada, se desculpando a todo instante por não poder nos dar muita atenção. Preparava o jantar para os filhos que logo voltariam da escola enquanto ia lavando a louça em bacias, já que a pia não está ligada à água nem ao esgoto, é apenas um móvel de apoio. Enquanto cozinhava ia nos mostrando como vai resolvendo as questões domésticas: “Lavo e deixo aqui, assim ó, nem é preciso secar”. Na pressa, quebrou dois pratos: “Ai, agora vou ficar só com dois!” Entre uma tarefa e outra, ia enchendo baldes com água e nos explicando: “Lá pelas 7 para de sair e só volta amanhã, se eu não fizer assim, fico sem nada.”
“Agora podemos conversar direito!”, largou-se finalmente no sofá. Mostrou-nos seu notebook, novo e ainda na caixa. “Sem internet, ele não serve pra nada, só tem joguinho chato”. Ligamos, mostrei como usar o bloco de notas. Lendo o pequeno texto que escreveu, lancei o desafio: colocar pontos onde tinha um espaço na fala, um tempinho entre um assunto e outro, uma respiração… “Ufa! Pra isso que eles servem?… Isso cansa!”, divertiu-se, percebendo que com pontos as frases ficavam um pouco mais fáceis de serem entendidas. As vírgulas, por sua vez, ficaram para uma próxima…
Na matemática a coisa estava um pouco mais complicada: o professor havia dado uns exercícios que ela não estava entendendo nada. Mal comecei a explicar, e ela: “Foi isso mesmo que o professor fez! Igualzinho! Esses mesmos desenhos!” Tratava-se de conjuntos com intersecção. A diferença, ela nos contou, era que o professor não explicava nada, nem se alguém perguntasse. “Ele coloca na lousa a resposta e logo apaga, não dá tempo nem de copiar direito! Agora sim, tô entendendo…”
Tanta coisa pra fazer e mostrar, chega de lição! Caderno fechado, subimos para ver seu quarto. Jogando-se no próprio colchão (o do meio do triliche, que divide com o filho menor) fez pose. “Posso fotografar?” A permissão veio com nova pose. E outra. Começava assim um improvisado “ensaio fotográfico”.
Colorida, desinibida, divertida, bonita, ousada… Nossos celulares “clicavam”, enquanto ela criava cenas, olhares, poses, bocas. Soninha dirigia: “Vira um pouco o rosto, olha pra cá, um pouquinho pra cima, ali na luz… isso!” Que farra, parecíamos três adolescentes brincando de top model.
“Pena que não posso rir”, lamentou ao ver o resultado, mostrando-nos a falta de alguns dentes. “Vamos tentar te ajudar com isso, né? Pra você não ter que esconder nada, poder tirar foto à vontade e sair linda por inteiro…” Prometemos também falar com um amigo, fotógrafo profissional, quem sabe ele não topa fazer um ensaio fotográfico de verdade?
No dia seguinte, enviei-lhe as fotos no WhatsApp e ela rapidamente respondeu: “obrigada por tudo vc e nossa amiga sonia”. Mas, sendo bem sincera, sou eu quem deve agradecer: uma tarde agradável como essa não é todo dia que temos a boa fortuna de viver!
Luciana Damasio
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Um trabalho maravilhoso dessa turma que, silenciosamente, vem ajudando a tantas pessoas sofridas. Vale a pena acompanhá-los e, quando possível, também ajudar do jeitinho que cada um pode.